quinta-feira, 14 de junho de 2012

Sombras...


"Sentou-se delicadamente na pedra mais segura daquele lugar para esperá-lo chegar. E estes poucos momentos de espera revelavam bastante de seu interior, e também de seus desejos futuros, meio premeditados dentro da lentidão das gotas que desenrolavam pelo vidro da janela, meio incógnita, como a neblina que escurecia o caminho. Mistura de futuro e passado, nem se interessava mais desde que aprendera a virar a ampulheta segundo interesses.
As sombras que se deitavam pelo úmido e escuro beiral já nem traziam tanto temor, como antes qualquer sinal contra a luz poderia causar. Ao menos nos últimos três séculos. Já era sabido que medo maior se deveria ter das sombras de dentro, e apenas um fio de luz ainda insistia em afastá-las dos hemisférios mais altos de si. Na parte que guardava os compartimentos mais dignos e misteriosos.
Durou pouco até que ele apareceu como o esperado. Vinha todas as noites num contínuo e simétrico movimento. Todo o cenário também era o mesmo, muita coisa já havia sido vista e a repetição já mantinha um rangido quase insuportável, dos mesmos passos para as mesmas direções. A linha fronteiriça não nos permite ainda grandes definições.
Os olhos meio encobertos estavam dotados de interrogações, não se transportava o que seus olhos viam. Ao menos se sabia que não seria uma travessia convencional. O ingresso dividia-se entre a certeza de ir – estava lá, não era? -, e o inédito que as interrogações oculares traziam, e se traduziam na certeza de que não era convencional aquilo tudo. O rangido havia mudado.
- Quem sois vós? E para onde vais? Perguntou, assassinando certeiramente os filetes de silêncio que competiam com o frio. (Vitória do frio!) Talvez matasse também alguns dos gélidos espaços interiores involuntariamente criados. Estes deveriam ser mortos!
Talvez não fosse tão incompetente assim em traduzir olhos. Talvez não se achasse tão complexa a visão para acreditar que certezas neste sentido não seriam possíveis. Há séculos que as certezas haviam caído em desuso, assim como os valores aos quais ainda insistia em procurar anacronicamente.
Mas as perguntas levantaram complexidades maiores. O simples sempre foi mais complexo. Se por um lado os enquadramentos da primeira pessoa do singular fossem impossíveis para se fornecer naquele contexto, o saber para onde ir – apesar de não obedecer a mesma lógica - ainda guardava uma superficialidade de um suposto não-saber. E nisso inclui, também, as irresponsabilidades inatas que permitiram que o outro fosse simplesmente o outro. Ou que apenas transportasse, melhor dizendo.
Mas antes de se pensar nas possibilidades de resposta para a primeira pergunta, o encaixe da segunda encerrou de uma vez o angustiante quadro, pincelando enfim os últimos delineamentos. Então, com os mesmos gestos que lhe diferenciavam das demais sombras - e competir com as sombras não incomodava jamais - atravessou a pequena passagem, sentando-se de forma tão segura e delicada quanto no descrito no primeiro parágrafo. Talvez se colocasse sobre as letras traçadas nos primeiros registros (Há! Os primeiros registros...), e disse, com sons que nunca se atrevera expor, costurando violentamente os símbolos:
- Siga, apenas. E volte dois séculos e meio."  

(14_06_2012 / 00:35)

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