Já tem um tempo considerável que não cruzava estes portais.
Sempre foi um lugar de exposições sofríveis. Durante tanto tempo eu me convenci
de que os negros e úmidos ornatos que circundavam meus olhos poderiam formar
algum desenho interessante, apreciável. Mas sabe o que é ter que se acostumar
com tudo dando sempre errado? Sabe o que é ter que fazer tudo sempre em dobro
para conseguir um sorriso? Tudo sempre foi tão vazio, tão mesquinho, tão frio.
Acho que aprendi a ser pequeno. Força da repetição.
Mas não vou me prolongar muito nesta entrada. Em qualquer exaltação,
ao ver os antigos pilares. Nem vou usar as clássicas fórmulas, que apenas
apresentam, agora, um dourado ridículo. O antigo “Es war einmal” [Era uma vez], ou o “Sie lebten glucklich bis an ihr Ende” [e foram felizes para sempre],
não possuem mais os contornos de outrora. A sensação é como se eu entrasse em
um imenso túmulo. A minha antiga tumba, com todos os meus ratos e decomposições
antigas. Quadros antigos, paredes arranhadas, memórias estilhaçadas em todas as
partes, tudo embevecido no mais autentico sal lacrimejante. Corrosivo.
O objetivo desta visita, até certo ponto reconciliadora, é
tentar resgatar um pouco dos Augustos, que se fragmentaram nos últimos mares. Também
para contar um grande acontecimento de hoje. Foi um dia muito especial. Muito
especial mesmo. Acho que foi o melhor dia da minha vida.
Sei que não existem palavras suficientemente competentes
para representar o mínimo do que senti hoje. Mas devo registrar aqui. Sinto-me
obrigado a esconjurar todos os fantasmas que habitam este lugar. Todas as
memórias doídas que ainda possam resistir. Sei da fragilidade da minha
exposição, sei das minhas inseguranças estruturais, sei dos limites que
esmurrei a vida inteira e das muralhas que cheguei a amolecer com minhas
lágrimas. Avancei centímetros, e sei de tudo.
Hoje meus sentidos extrapolaram todas as minhas limitações e
certezas. Uma sensação que levarei eternamente comigo para onde quer que eu for,
independente do destino. Devo dizer que o que vivi foi fruto de meus últimos
dias. Das possibilidades que os Olhos de
Avelã (FERNANDES, 2012) me mostraram.
Exatamente ao meio dia - criaturas sombrias como eu costumam
habitar extremos: meio dia, meia noite – fui ao centro da cidade resolver
superfluidades. Andando com passos abafados, e munido de meus instrumentos,
desci a avenida, traçando o planejamento dos passos, como de costume. Estes
planejamentos são quase tão necessários quanto meus pés, olhos e braços.
Uma coisa me deixava feliz, um grande dilúvio de ventos se
aproximava. A oeste, uma imensa e negra nuvem cobria o céu, com alguns filetes
cor de grafite úmido e de prata florescente ligando as dimensões.
Negros de
cima, e negros de baixo. O cheiro de tudo aquilo me atraía. Sou perdidamente
apaixonado pela chuva. Todas elas, de todas as intensidades e com todos os seus
elementos.
Segui, com minha missão entre os dedos, e com meus fones de
ouvidos. Minha cabeça girava com aquele som, fazendo minhas roupas voarem no
úmido oposto das nuvens que vinham. Dos sentidos, uma parte se ocupava daquele
som, as outras contemplavam as novas ocupações dos Olhos de Avelã, meus doces Olhos
de Avelã. Contraditoriamente, meu
movimento era inverso. Mas me sentia bem em saber que, mais cedo ou mais tarde,
seria surpreendido por tudo aquilo.
Não esperava que o acontecido pudesse acontecer. Na verdade
nunca pensei que pudesse sentir algo daquela natureza, nem de forma imaginada.
Minha imaginação é bem fértil, e extremamente traiçoeira. A combinação
destrutiva: minha imaginação, minha memória e minha consciência. Mas desta vez
elas me presentearam, foi a primeira vez que não entramos em conflito. (Deveria
dizer isso aqui. O contrário seria uma injustiça, até para evitar transtornos
posteriores. Como diria o velho marinheiro holandês: “men moet zeilen ter wijl de wind dient” [tem que se navegar
enquanto o vento esta a favor.])
Na encruzilhada das duas maiores avenidas, senti que a chuva
havia chegado bem próxima. Docemente algumas gotas tocaram, e se desenrolaram
sobre meu corpo, assim como os macios dedos do menino de olhos amarelos. A esta
altura, nenhum cristão ousava me acompanhar na travessia insensata, que se
desenhava mais fortemente depois que pingos mais consistentes estilhaçavam pelo
chão.
Indeciso. Resolvi insistir em alguns passos, mesmo sabendo
dos riscos. Mas fui recompensado, de forma que em todos estes séculos, nunca
provei de sensação mais sublime.
Não sei definir com precisão as balizas do êxtase principal,
apesar de reconhecer importante. Mas diante do acontecido, nenhuma teoria ou explicação
tem o menor valor. Parei, e aceitei o convite de uma das sacadas que me
oferecia abrigo. As nuvens negras, que antes escureciam o céu, se desenhavam
por entre as sinuosidades das ruas e calçadas. Escorria muita coisa.
Sem muitas opções, meus olhos foram se fechando ao doce som
daquela música. A diminuição dos sentidos fez com que o imperceptível se
tornasse tão poderoso quanto as nuvens descritas acima. Com os lábios
entreabertos, senti que algumas daquelas minúsculas gotículas começavam a
vibrá-los. Com toques leves, mas que eu passava a senti-los como choques, que
envolviam todo o meu corpo.
A imaginação entrou em serviço. O inconsciente, e o involuntário-mais-que-voluntário,
começaram a agir, fundindo memórias recentes. O toque das gotas de água me
faziam lembrar vivamente do beijo dos Olhos
de Avelã. Da sua boca úmida e macia. A cada toque em meus lábios, era como
se uma nota musical se fizesse ouvir, despida de uma forma linda, munida apenas
de um sussurro conhecido, escondido ao pé do ouvido.
O êxtase se intensificava. O beijo já estava formado. Eu
senti perfeitamente o seu beijo. Seus lindos lábios se representaram com
maestria naquele intenso espetáculo. Fusão de toda aquela força com imaginação.
Lavando a minha memória, minha tumba, de tudo. Tudo o que eu nem lembro mais
que existia.
Algumas gotas ainda deslizavam pelo meu corpo, e eu senti
seus leves dedinhos mapeando cada uma das minhas ondulações invisíveis. Apenas
tocáveis.
Esta eternidade se desenhou por cinco a dez minutos. Momento
em que alguns passantes começaram a olhar e desfazer aquela minha verdade.
Guardei então seu beijo de água de chuva, seus dedos do mais leve orvalho, e a
sua presença mais forte que os raios que douravam o céu. Guardei tudo em mim.
Acho que ocupei os espaços de meu mundo que ainda estavam disponíveis.
Foi incrível. Indescritível. Perdoe-me a irresponsabilidade
e secura das palavras. Entendo. Entenda. Mas os sentidos maiores jamais poderiam
ser condensados aqui.
Voltei então para casa. Com o mais bobo sorriso do mundo. Convencido
de que as próximas flores das minhas pitangueiras serão amarelas. Um amarelo-avelã.
(Augustu, 06.02.2012_01:08hs)
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