terça-feira, 5 de abril de 2011

Estagiando relatos, desvirtuando desérticas mareagens!


Ontem a chuva foi pesada. Dos meus tempos de marinhagem nunca tinha passado por situação semelhante. Eu estava meio cansado dos trabalhos do dia anterior. O capitão queria que todos os compartimentos das embarcações fossem limpos e arrumados. Na verdade não era muito uma questão de limpeza mesmo. Quando se esta a tanto tempo sentindo apenas o balanço salgado das ondas a última coisa a se preocupar é em arrumação. Já estávamos todos acostumados a ver todo tipo de desumanidade por este mundo móvel nosso. Mundo diferente do que me ensinaram. Este sim, era quadrado, cheio de limites. Os limites eram líquidos, e os monstros dormiam sempre ao nosso lado, ao meu lado. Mas prefiro acreditar que, ainda, não era um deles...   
No convés da nossa nau não tinha muita bagunça. Não. As embarcações de segunda ordem eram as mais problemáticas pois eram as que traziam os mantimentos e outros utensílios.. As maiores, como a minha, a que eu era tripulante permanente, não possuía tantos problemas afinal era nau de carregamento, nau de carga. As naus de carga eram as estrelas de qualquer carreira. A minha ia em busca de pimenta. Carregamento aqui valia mais que a nossa própria vida. Era duro entender isso. Era uma vida no escuro, fria, cheia de submissões. Mas eu sempre aceitei, eu tinha meus objetivos. Poucos, mas meus. Apesar do preço a pagar.    
Sempre morei numa cidade litorânea. E cresci vendo o mundo através da voz dos homens que atravessavam as águas. Não possuía muita perspectiva onde estava e resolvi sair. Mas não sabia também aonde ir. Eles nunca gostaram de me ver brincando com meus grandes navios. Brincando de enriquecer. Brincando de encher nossos porões de pimenta e gengibre. Sempre que descoberto, meus sonhos acabavam por ter o mesmo sabor dos carregamentos de meus navios de sonhos que navegavam nos mares de meus desejos.
Hoje estou aqui. Navegando justamente da forma como brincava. Se eles me vissem agora diriam: “Vê onde você está? Vê que o seu sonho não é tão doce quanto o mel”. Mas mesmo assim me sinto feliz. Estou no caminho. Acostumei-me tanto a não ter os sonhos como fins em si que o caminho, o processo, geralmente sofrido, figura como o realizar. Talvez no fim desta jornada eu consiga mesmo o que eu quero. Talvez.  
Lembro-me do dia em que embarquei nesta companhia. Saí escondido. Fugi. O Marcelo me ajudou. Grande Marcelo. Não tinha tanta coragem quanto eu. Ainda mais depois de ouvir tantas histórias daqueles marinheiros malucos sentados na praia. Trarei uma sereia para ele. É, uma sereia! Sr. Capitão me viu na segunda fileira. Não me deixaram ir para frente. Tão franzino, morreria no primeiro combate. O seu dedo foi guiado apontado para mim. Não me pergunte por quem. A única palavra que me lembro do porto de minha querida Lisboa: “Você!”  Vontade de correr, de voltar para debaixo do limoeiro e remoer todos aqueles horizontes que se desenhavam pelo leve sopro  do vento nas pequenas folhas a minha frente. Mas meu limoeiro não me aceitaria mais em sua sombra. Ou batizava-me nas líquidas salinas do Atlântico ou iria para outro lugar. Longe dele. 
“Você quer vir comigo?” Que convite recusável. Vontade de correr. Mas foram tantos lados para si ir que acabei por subir justamente pela taboa que traçaria meu destino. Destino incompleto ainda.
Entrei na embarcação principal. Era a primeira que encontrei. Mas não deveria durar muito ali. Só a ponta da hierarquia daquela carreira passearia por aqueles corredores. Depois me levaram para outra nau. Já tinha algum conhecimento náutico. Fruto das intermináveis tardes de conversa com D. Joaquim, um velho marinheiro que enchia meu futuro de sonhos. Sonhos que traziam compartimentos abarrotados de pimentas e gengibre. Pimenta e gengibre! Que combinação para um sonho. Deveria mudar de foco, transformar estes objetivos. Mas apesar das produções da América serem as mais adequadas aqui as especiarias me renderiam mais, bem mais.
Na verdade tinha medo deles, dos Holandeses. O oeste do Atlântico era o lugar deles, segundo D. Joaquim. As histórias dos ataques me enchiam de pavor. Naquele tempo de limoeiro. Hoje apenas abrir os olhos me casa medo. Saber que amanheceu me causa medo! Doces ilusões passadas.
Já estamos navegando a dias. Perdi a conta, a noção do tempo. Quando se esta  no mar as simples referências que guiam qualquer homem na terra perdem o valor. Tudo parece ser eterno, circular, terrivelmente interminável.  Não vou tratar das noites. Não! Já é tão duro vivê-las, atravessá-las, que, pelo menos aqui, não vou falar delas. Desculpe-me.
Mas é isso, só isso. Ontem a tempestade quebrou um pouco a maresia da viagem. Há tempos que nada mudava a rotina, nada te fazia acreditar que estavas a bordo de um navio no coração do Atlântico sabe?  Atlântico tão turbulento nas palavras de Dom Joaquim. Hum. Estamos quase chegando perto do Cabo e o Atlântico nem se mostrou tão monstruoso. Há Dom Joaquim! Os mares não balançam mais como nas tuas histórias. Ou tuas histórias nestes mares acabam por ser uma inverdade que não me agrada!
Mas vou continuar observando. Devo lembrar-me de levar a sereia do Marcelo!   


(Augustu, 31.03.2011_22:50 hs)

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