domingo, 27 de março de 2011

Liberdades, desertos e esferas....

Ele sempre repetia as ações da mesma forma. Eu observava todos os seus passos.  Nem queria, mas como o cenário se localizava muito perto de minha casa, porta com porta, não havia forma de não ver. As pessoas chegavam sempre a partir das 21:00 horas. Sempre. Eu via apenas a chegada, pois já estava prestes a dormir. Nunca vi as saídas. Não me interessava.
O ritual seguia um mesmo padrão, sempre! Ele chegava primeiro. Geralmente. E ficava sempre no portão principal. As outras chegavam depois, naquelas grandes engrenagens que fazia medo até de olhar, mas a proteção da minha casa permitia-me ver, apenas ver. Nunca me explicaram de onde vinham, nunca me falaram. Sabia apenas que a gênese daquele trafego era o escuro fim da rua.
 A noite no final da ladeira era escura. Principalmente do lado da casa de Marcelo, do outro lado do mundo. A rua a noite, após o chamado matriarcal, sempre do mesmo horário, tomava contornos sombrios, intransitáveis. Também só depois das dez. Momento em que tudo o que se tinha medo vinha passear pelas redondezas. (Da minha casa! Que era aonde se desejava mais se estar. Vejo sempre o sol se pôr da soleira da minha casa!)
Elas paravam as imensas esferas negras e desciam. Todas iguaizinhas, era incrível. Algumas vezes pensei em ser tudo uma grande loucura de minha cabeça. Repetição de cenas, sei lá... Mas era uma repetição. Ele não. Por mais que repetisse alguns gestos sua expressão mudava, a cada parada e a cada descida. A cada cumprimento. Não tinha ares de grande satisfação, apesar dos demorados sorrisos. Sorrisos burocráticos, por assim ser, por assim estar, está!. Mas estas análises comportamentais não faziam (e nem fazem!) parte da temporalidade do escritor/personagem do texto. E sem teorizações desnecessárias agora. Sem muita paciência.
O fato é que nesta noite as coisas se configuraram de forma diferente. Por décadas eu observava aquelas cenas. Todas as décimas sextas do mês. Não entendo por que ninguém respondia as minhas perguntas sobre aquilo. Sobre aqueles gestos, aqueles atos, aquelas esferas móveis e todos aqueles que desciam. Desciam e eram iguais. Vestidos na mesma escuridão de onde saíam. Era muita loucura para minha cabeça. Já andava imaginando coisas demais. Você também! Mas para mim era real, as coisas aconteciam mesmo. Sabe?
Mas isso não quer dizer muito. Quando determinados acontecimentos caem na rotina tudo torna-se invisível, costumeiro, sem muita importância. Eu já tinha ciência disto. O diferencial naquela noite, naquela noite invisível era a forma como ele sorriu. Os lados para onde andou. A forma como se portou. A forma como me direcionou toda a encenação das décimas noites de sexta do mês.
Maluquice da minha cabeça, perda de tempo, falta de sono... Tudo conjugado em questões talvez irrespondíveis. Mas os meus olhos insistiam em se manter aberto. Em me transformar num grande insone. Investigando e teorizando o simples, o prático. Debruçado na minha curiosidade. No beiral esquerdo da janela. Do lado em que as estrelas não caem. Ao menos as vermelhas.
Sorriu. Não o riso burocrático. Cumprimentou. Escoltou. E voltou. Repetindo os mesmos movimentos. Mas cheio de algo diferente. Algo que eu não enxergava, que não me revelaria. Que talvez ninguém identificasse também. Eu que já observava a milênios não consegui ver. Só percebi. Talvez já estivesse cheio demais, completo demais... Completo de forma a não me/te permitir ver tudo.
Em minhas especulações, fundamentadas nos ares que atravessavam uma porta a outra, havia o diferencial. As minhas limitações não me permitiam atravessar a rua e ver, ouvir e perguntar. Por que não? Tão fácil né? Nem sempre. Os dois lados da rua são diferentes. São! E se pensar em igualá-los assim tão fácil, num estalar de dedos, não seria pertinente. Não mesmo! Não me agradaria, nem me agrada! A liberdade não consiste apenas em se fazer tudo, mas saber quando e como se deve fazer tudo.
Fui dormir. Com minhas especulações e hipóteses. Mas de alguma forma satisfeito. Na próxima noite talvez eu atravessasse. Talvez. A minha indignação naquela noite foi ver com mais clareza as coisa. Foi saber que toda a curiosidade poderia acabar com poucos passos. Fáceis passos. Mas não consegui. É isso. E devia ter liberdade para isso. Devia sim!
A liberdade não consiste apenas em atravessar a rua. Mas permitir-se entender e compreender se deves ou não atravessar. Independente dos motivos. Entender os limites e ter o poder de decidir se eles são muralhas ou portais, numa mesma escala de valor. Independente de ser rotulado de não liberto, o interior sempre foi livre.  


(Augustu, 27.03.2011_16:34hs)

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