terça-feira, 22 de março de 2011

A estrela esquerda



Era mais uma tarde como todas as outras. Uma tarde de outono. Os meses de outono são os mais apreciados para se soltar pipa. Desde o fim do período junino eu, com todo o restante dos meninos da rua juntamos todos os cacos de vidro e palhas de coco disponíveis pelas redondezas. Iniciasse o processo de construção dos instrumentos que vão nos levar a perdição nas próximas semanas. O relógio, o ponteiro e os gritos de mainha caem totalmente no descrédito neste período. A não ser quando ela me chama pelo meu nome composto. Aí sim, não existe barreira que me impeça de subir a ladeira correndo para acatar as suas ordens.
Todos agrupados. De forma mais ou menos definida, numa geografia altamente problemática. Mas não devemos entrar nestes detalhes para não mudar a lógica inicial do texto. (Culpa sua!) Seria interessante refletir um pouco sobre isso, principalmente no que concerne à chegada dos meninos de fora, das outras ruas. De qualquer forma estávamos agrupados com toda a matéria prima e os instrumentos necessários. Linhas, varetas, cerol e outras esquisitices que substituíam as facas das cozinhas. Sempre eram requisitadas, e sempre negadas também... Quase que com maior intensidade! Mãos hábeis, todo o conjunto de pipas pronto iniciava-se a fase de testes.
Talvez seja uma irresponsabilidade utilizar o termo teste. Teste? Teste da a idéia de algo experimental, de algo a ser provado, analisado, examinado. A risadaria de cada um daqueles moleques com aquele carregamento de pipas embaixo do braço não concorda nem um pingo com esta idéia de teste. Eles, doutores em linhas, desbiques, cortes e, por que não, joelhos esfacelados das últimas batalhas. Ai ai.
Iniciados os processos. Esperados processos.  Todo o material subindo pelas nuvens, brilhando intensamente através do dos raios do sol do fim de tarde. O céu era tomado por uma série de pontos coloridos com os mais diversos padrões e formas. Era uma arte. Todas as pipas eram cobiçadas nas disputas de corte. Tanto a cabeça como a rabiola. Só os menores que ainda dissecavam sacolas de supermercado para forrar as “talescas” e fazer a rabiola. Quadro pavoroso o resultado final, pode crer!
Os maiores, os deuses daqueles dias de outono, já haviam passado pela grande revolução do papel de seda. Corte, cola, rasga, franze, cada um era especialista no trato da matéria prima. Quanto mais velho se era, mais bem elaborada ela ficava. Isso seguia uma linha de pensamento, uma seriedade de composição incrível. Nem vale expor muito, tentar expor aquilo tudo, aquela ocupação de todas as tardes. São interpretações irresponsáveis. O ver seria o ideal.
Eu me encontrava num estágio intermediário. Nem no patamar das sacolas de supermercado, nem no do papel de seda. Intermediário. Só. Minha pipa sempre era preta. Totalmente preta. Sempre gostei, apesar de todas as críticas e ofensas. Olhando pelo lado bom, se é que ele existia ou até forçando a existência de uma positividade nisto tudo, ninguém vinha cortar a minha pipa. Fato. Sempre voltava para casa com a minha embaixo do braço. Na zona de batalha, onde empinávamos nossas “crianças”, a minha volta com ela no braço era ruim. Todos entendiam a recusa em não se querer cortar a minha. Não só por não se querer cortar mas pelo fato de voltar com ela inteirinha. Inteirinha. As outras voltavam esfaceladas, sem rabiola, um horror. Esta era a satisfação, o ápice, a lógica do outono. Voltar com a carcaça da batalha, algo que confirmasse que meus cavaleiros não haviam se desmanchado pelos ares e seus restos mortais levados por linhas alheias, linhas de outras ruas.
Há, ia esquecendo me de uma coisa: os meninos das outras ruas! O outro grupo que digladiava com os de minha rua pelos ares. Não nos conhecíamos direito, só por alguns apelidos. Apelidos que não necessariamente diziam respeito aos respectivos donos.  As pipas incorporavam os nomes, e nos conhecíamos através delas. Ninguém ousava ir procurar contas com outras ruas. As potencialidades da nossa já satisfaziam e muito! Conhecia alguns meninos da outra rua. Pouquíssimos. Já que estamos trabalhando numa determinada lógica é legal apontar que a preocupação era saber apenas de quem era a respectiva pipa que rasgava os ares contra a nossa rua.
Confesso que hoje fiquei olhando só uma pipa. Só uma me interessou neste fim de tarde. Já tinha visto ela outras vezes, achei bonita. Lembro-me da primeira vez que a vi. Foi num início de tarde, diferente dos horários normais de “nossos trabalhos”. Ela voava alto e eu não conseguia ver a cor dela. Não conseguia ver mesmo. De onde eu estava via apenas um ponto, la no alto. Sendo mais claro: onde eu não conseguia chegar. E o fato de não enxergar as cores dela me intrigava de forma doentia. Minha lógica: para estar tão alta daquele jeito não poderia ser de um menino tão pequeno. Como eu por exemplo. E por não ser de um menino tão pequeno não deveria ser monocromática como a minha. E aí estava a problemática da história. Eu não enxergava os seus desenhos.         
Os dias passaram e a pipa aparecia religiosamente no mesmo lugar, sozinha e num horário diferente das demais. Depois as outras chegavam, mas só depois. Aquilo consumia meu juízo: desconhecer as cores dela. E o problema estava armado. Passei a descer a ladeira sem mais a minha pipa, para estranhamento geral da nação. Passava horas observando-a. Horas. Sabia que ela não me via, ao menos achava que não. Enfim. Era minha nova ocupação de outono, observar aquela pipa diferente, ela passaria a atrair minha atenção em minhas questões daquela estação.  Isto durou até quando eu resolvi descobrir de quem pertencia aquilo que me chamava tanto atenção. Numa altura destas já não me interessava mais as pequenas questões. Saber a origem, de onde vinha aquele material passou a ser uma das minhas futuras empreitadas.   Quem era o dono daquela  pipa.

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